A Sociedade das Flores foi um projecto que abortou. Um espectáculo teatral que não passou de uma incipiente fase de ensaios. Tentámos ressuscitar um cadáver esquisito e o resultado foi um nado-morto. Nada de mais nem de menos. Apenas aquilo, exactamente. Aqui fica um excerto, um monólogo que ainda foi dito e ensaiado uma mão-cheia de vezes pelo André Louro. Apeteceu-me colocar isto no Carapau Staline. Outros textos virão, lá mais para a frente. Não é por nada, mas escrevi estas linhas e não passaram completamente para o "outro lado". Que passem agora.
Cena – Guarda-chuva cor-de-rosa
- Aconteceu e nunca mais me esqueci.
Não tenho bem a certeza de que as coisas se tenham passado exactamente assim mas é assim que as recordo.
Na verdade sei apenas que aconteceu.
Estava um homem deitado ao comprido no passeio, como um cobertor.
Não tinha sangue nem havia sinais de violência. Parecia apenas adormecido, esquecido do mundo.
Os transeuntes passavam pelo homem como se ele não existisse, como se não estivesse ali. Desviavam-se com gestos imperceptíveis, delicadamente.
Havia qualquer coisa de belo em tudo aquilo, a leveza dos gestos das pessoas, a posição do corpo estendido... fiz como os outros, desviei-me, mas os meus olhos prenderam-se àquele vulto amarrotado.
Ao passar por ele torci o pescoço. Não queria perder aquela imagem.
Foi então que um cão se destacou do espaço em volta, como se se tivesse materializado ali, naquele preciso momento. Um rafeiro amarelo e sujo que começou a farejar o homem.
Ninguém olhava, apenas eu parecia assistir ao pequeno espectáculo.
O cão lançou um olhar na minha direcção e rosnou.
De súbito o corpo mole teve um espasmo, contorceu-se e levantou-se de um salto.
O cão ganiu e fugiu, volatilizou-se.
O homem era enorme.
O cabelo comprido e a barba davam-lhe o aspecto de um Cristo medieval, daqueles Cristos juízes, ameaçadores, com um livro numa mão e a outra erguida numa bênção assustadora. Os olhos encovados, bordados com fundas rugas pareciam buracos sem vida. Por um momento tive a sensação de que todo o frenesim da rua havia parado.
Dos olhos do homem jorrou uma luz intensa, brilhavam como faróis e os pés descolaram ligeiramente do chão.
Levitava!
Senti a minha boca abrir-se num esgar de espanto.
Levantou o braço direito, esticou-o em direcção ao céu e subiu em grande velocidade, puxado por um cabo invisível, como um super-herói de banda desenhada.
Vuuuut!!! Desapareceu para lá do topo dos prédios, para lá das nuvens, foi-se embora voando como um míssil.
E começou a chover.
Uma mulher abriu um guarda-chuva cor-de-rosa e tudo na rua recomeçou a funcionar normalmente.
Afastei-me dali com o coração apertado e uma tremenda vontade de chorar.
Foi o que fiz.
Chorei durante 24 horas seguidas e, desde esse dia, nunca mais fui capaz de chorar.
A mulher apaga-se bruscamente.
- Aconteceu e nunca mais me esqueci.
Não tenho bem a certeza de que as coisas se tenham passado exactamente assim mas é assim que as recordo.
Na verdade sei apenas que aconteceu.
Estava um homem deitado ao comprido no passeio, como um cobertor.
Não tinha sangue nem havia sinais de violência. Parecia apenas adormecido, esquecido do mundo.
Os transeuntes passavam pelo homem como se ele não existisse, como se não estivesse ali. Desviavam-se com gestos imperceptíveis, delicadamente.
Havia qualquer coisa de belo em tudo aquilo, a leveza dos gestos das pessoas, a posição do corpo estendido... fiz como os outros, desviei-me, mas os meus olhos prenderam-se àquele vulto amarrotado.
Ao passar por ele torci o pescoço. Não queria perder aquela imagem.
Foi então que um cão se destacou do espaço em volta, como se se tivesse materializado ali, naquele preciso momento. Um rafeiro amarelo e sujo que começou a farejar o homem.
Ninguém olhava, apenas eu parecia assistir ao pequeno espectáculo.
O cão lançou um olhar na minha direcção e rosnou.
De súbito o corpo mole teve um espasmo, contorceu-se e levantou-se de um salto.
O cão ganiu e fugiu, volatilizou-se.
O homem era enorme.
O cabelo comprido e a barba davam-lhe o aspecto de um Cristo medieval, daqueles Cristos juízes, ameaçadores, com um livro numa mão e a outra erguida numa bênção assustadora. Os olhos encovados, bordados com fundas rugas pareciam buracos sem vida. Por um momento tive a sensação de que todo o frenesim da rua havia parado.
Dos olhos do homem jorrou uma luz intensa, brilhavam como faróis e os pés descolaram ligeiramente do chão.
Levitava!
Senti a minha boca abrir-se num esgar de espanto.
Levantou o braço direito, esticou-o em direcção ao céu e subiu em grande velocidade, puxado por um cabo invisível, como um super-herói de banda desenhada.
Vuuuut!!! Desapareceu para lá do topo dos prédios, para lá das nuvens, foi-se embora voando como um míssil.
E começou a chover.
Uma mulher abriu um guarda-chuva cor-de-rosa e tudo na rua recomeçou a funcionar normalmente.
Afastei-me dali com o coração apertado e uma tremenda vontade de chorar.
Foi o que fiz.
Chorei durante 24 horas seguidas e, desde esse dia, nunca mais fui capaz de chorar.
A mulher apaga-se bruscamente.
2 comentários:
o espírito da coisa!
+++Bela Aparição!!!
Historietas mas, ditas por actores, ganham uma dimensão estranha pra caraças!
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