sexta-feira, 4 de maio de 2007

O Sr. Sargento


da série 100 Cabeças 1000 Sentenças
O Sr. Sargento
acrílico e colagens sobre papel (envernizado)
tamanho A4
Um dia, já lá vai tanto tempo, era eu um adolescente e tinha muitos amigos. Amigos mesmo, daqueles com quem discutimos o mundo e dizemos coisas enormes e feias como o caralho e nos rimos muito de as dizermos e fazemos disso uma gala luxuosa e diária. Fazíamos, melhor dizendo, que já lá vão muitos anos, e esses amigos agora já são outras pessoas e eu também estou longe de ser o mesmo. Um dia, dois desses meus amigos que eram inimigos figadais, agrediram-se por questóes antigas, daquelas que se misturam nos vapores do álcool e se transformam em questóes eternas embora ninguém saiba muito bem explicá-las. Talvez até não existisse nada a não ser animosidade pura e simples. Enfim, um dia o Sr. Lapa atestou um tal murro no Sr. Sargento que lhe partiu os queixos e ele teve de os segurar com uns aramitos. Dias a fio com os queixos assim presos por arames, o amigo Sargento não podia mastigar e mal podia beber. Só ajudado por palhinha. E não gostava de leite nem de água. Lá fomos à tasca aviar uns quantos penalties de tinto e mais uns outros que a sede é coisa que não se mata a não ser que se afogue. E o Sr. Sargento começou a sentir-se mal, a sentir-se tonto, a sentir-se explosivo. E lá veio o vómito. Queixos cerrados pelos arames o vinho saía num jacto. Pelo nariz. Pelos cantinhos da boca. O rapaz sufocava, esperneava, debatia-se com dificuldades imensas. E nós, os amigos...? Ríamos. Ríamos alarvemente, a bandeiras despregadas. Ninguém o auxiliava. Rebolávamos a rir. O Sr. Sargento resitiu heroicamente. A essa provação e a muitas outras. Algumas bem piores. E nós com ele.
Hoje já não existimos todos. Houve quem morresse que os excessos foram, por vezes, demasiado excessivos. Não sei bem porquê esta cabeça fez-me recordar o Sr. Sargento. Esse amigo querido, bruto como as casas, de uma sensibilidade grosseira e uma imaginação infinita. Não o vejo vai para um largo par de anos. Tanto quanto sei ainda sobrevive. Eu também. A imagem do Sr. Sargento a deitar vinho tinto pelas narinas como torneiras abertas na máxima potência é uma recordação hilariante e assustadora. Recordo isto com um sorrisito nos lábios. Éramos mesmo amigos e, imagino, ainda somos. Precisamos apenas que o destino nos cruze outra vez. Boa noite, ó Sargento.

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